domingo, 11 de março de 2007

domingo, 4 de março de 2007

O ADORADOR DAS PAÇOCAS.

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Amava profundamente as paçocas.

Paçocas caseiras, talhadas em triângulos ou retangulares, as genuínas calcadas nos pilões, as mistas afetando os pés-de-moleque...

Era, enfim, um profundo apreciador das paçocas.

E não viessem a ele com a pamonha, o curau ou a canjica. Nem tampouco com os quitutes exóticos das baianas, a rústica compota mineira, nem a refinada doceria paulista. Comia somente as paçocas. Paçocas ao acordar, no almoço, à ceia, nos pequenos intervalos do trabalho, nos balcões das bodegas cheirando ao ranço das marias-moles e dos doces-de-leite vencidos.

Não conseguia imaginar-se privado das saborosas paçocas. As glândulas doíam-lhe nas mandíbulas, injetando-lhe na boca a saliva em profusão no prenúncio do amendoim beneficiado, torrado, macerado, amalgamado ao mascavo e posto diante de si, irresistível, mais tentador que qualquer outra coisa que conhecia em toda sua vida.

-Ave, paçocas! - ele dizia, abocanhando entre dentadas as deliciosas paçocas.

E pelas benquistas paçocas morreria, incontinenti, enfrentando tudo e todos. Erigiria altares, totens, venderia a alma ao tinhoso; mergulharia na fé do grão da mostarda, porque de fato a vida só tinha algum fundamento ante as magnânimas, inomináveis, indescritíveis, insubstituíveis pacoças!

Mago Eremita, 04/03/2007.

sexta-feira, 2 de março de 2007

A CÁLIDA AMANTE.

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Acreditou, finalmente, ter encontrado a mulher da sua vida.

Menina ruiva, olhos cor de mel, rosto cândido, olhar emoliente. Recatada nos gestos; sensata nas palavras. Transpirava por todos os poros uma natureza plácida e tolerante.

Amou-a logo nos primeiros contatos. Ela trabalhava com Feng Shui, harmonizando ambientes e pessoas. Não resistiu à nobre candura da menina, no falar manso, pausado, no olhar angelical, na delicadeza incitando o anseio maternal.

Ele desejou-a com toda a intensidade. Porque era já homem fatigado de grandes paixões, desiludido dos ardis nocivos do mulherio.

Enamoraram-se, experimentando as delícias mais cálidas. Mas, não contrariando a natureza, as carícias foram se tornando explorações menos pudicas, apalpações cheias de cumplicidade, a profanação dos genitais úmidos.

A cada nova incursão despudorada, ela enchia-se de pejo, olhos envergonhados.

Certa feita, não puderam mais suportar os impulsos do instinto. Trancafiaram-se no quarto.

Era a hora.

Ela, transmudada, atirou-o na cama. diante do olhar atônito dele, mostrou o quanto era uma mulher indômita.

-Agora és todo meu! - ela falou duramente, lábios rijos, arrancando com violência as roupas dele.

Não reconhecia mais sua emoliente ruivinha. Sobre si, viu uma amante voraz, tresloucada, cabelos desgrenhados e olhos de sibila.

A princípio, de forma alguma ela permitiu a ele debruçar-se sobre ela. Tal qual hábil amazona, executou todo o trabalho, enérgica, decidida, ditando o ritmo e a intensidade, proferindo palavreado chulo, entre estocadas firmes que rapidamente a levaram ao orgasmo.

Ele estava estarrecido. Ela, insatisfeita ainda, prendeu-o novamente à cama:

-Quero mais, biltre!

E, antes que ele pudesse pedir fôlego, ela passou a mordê-lo, arranhá-lo sem qualquer cautela, contorcendo-se como louca sobre o quadril dele, suarenta, gargalhando como que possuída pelo mais imundo Espírito da luxúria.

Com custo viu ela chegar a um segundo e estrepitoso orgasmo. E então percebeu, inquieto, que aquela mulher era insaciável.

Ela já não mais o via. Deitando-se na enxerga, coxas escancaradas, a vulva copiosamente úmida, ela puxou-o, impaciente, tão sequiosa quando nos primeiros momentos.

Ele tentou invadi-la, inutilmente. O membro estava lasso. O susto, e, mais que este, a decepção, a energia que ela sugara impiedosamente do parceiro, tudo isso deixaram-no em frangalhos.

Naturalmente, ela ficou indignada. Juntou as peças íntimas. Vestiu-se resmungando. E se foi.

Depois desse dia, deixou de amá-la.

E nunca mais a viu.

Mago Eremita, 21/02/07

sábado, 10 de fevereiro de 2007

TRIBUTO AO MENINO JOÃO.

Menino João,
Jungido à via-crucis de sangue
E aos desígnios insondáveis do Infinito.

-Mãe, não chora!
Estou bem.

O anjo guardião acorre, benévolo,
Antes mesmo do termo trágico
de tão nefando espetáculo.
-Cada qual terá seu quinhão,
Das benesses amaríssimas da dor.

Menino João,
Tudo está consumado!
Como os pequeninos judeus,
Dirás:
-Abba, em Ti rendo meu Espírito.

Num retrospecto,
O coche avança
a aléia sinuosa rumo ao Paço.
Num conluio sinistro,
O criado vem, lívido, esfacelado,
Atrelado ao ventre no relho do cocheiro.

Os Céus assistem tão brutal espetáculo.
O filho, a mãe, outrora consortes,
Serpeando nas enganosas veredas da Evolução.

Até quando a carne retalhada,
As ondas gigantescas do mar em desespero,
As grandes labaredas dos circos,
Dos edifícios e orfanatos inçados de chamas!

Até quando os carmas
Evolando tragédias e cenas atrozes!

Menino João,
Um corpo inerte,
Um passamento rápido,
Uma luz esplendorosa ascende
Rumo aos páramos celestiais.

Mago Eremita, 10/02/2007.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

SATANÁS EM FESTA DE GALA.

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A porta da Graça se fechara.

Amanhecera. Boa parte da humanidade fôra arrebatada.

A trabalhar no moinho, ou nos campos, um se fôra, outro ficara. E nunca se falou de Enoque como naqueles dias.

Finalmente, a aldeia global se tornara uma realidade. A consolidação da economia, da religião, da ideologia.

A Era Digital chegara ao ápice. Os recenseamentos, desde Herodes e Arquelau, tornaram o mundo um globo monitorado. Ninguém venderá, ou comprará, ou se moverá, sem o Sinal. Os fortes dominarão os fracos. É a Lei. Nos devaneios de Crowley, em reverência aos filhos de Sharon, descendentes do El Shadai, pai do Meshiak incumbido de abrir novamente os Portais da Era de Aquário.

O muro das Lamentações fôra demolido. Ah, Jerusalém Eterna, foste imortal em Patmos, sob os olhos prescientes de João, o maior vidente do mundo. A mulher vestida de Sol, nas ameaças da maternidade, mais uma vez pisara a cabeça da serpente, também embriagada com o sangue dos Santos, desde Nicéia, desde a cegueira de Damasco.

Satanás vestiu-se de gala. Subiu do Seol, para fazer cumprir a Palavra. Ele conhecia a Lei e a Graça. Inspirara a superação de Sócrates, Yashua, Maomet, Mani, desde que arrastara consigo a terça parte das estrelas com sua cauda.

E de Babel a Pentecostes, o mortais conheceram a glossolalia, os entraves mediúnicos, anímicos, e vaticinaram brandamente os albores da Quarta Dimensão.

Mago Eremita, 03/02/2007

A CIGANA.

Ele morava numa herdade, alí muito próximo. E, um tanto aborrecido, teve de resignar-se em ver as tendas toscas diante de si, todas as vezes que vinha à janela ou à porta.

Afinal, aquela terra não era propriedade particular.

Após algum tempo, já se habituava àquela presença bizarra. Sabia ser efêmera, os gitanos nunca páram.

Até que, certa manhã, numa das tendas, viu uma cigana sentada, imóvel, a fitar demoradamente sua morada.

Ele estacou, surpreso.

Era belíssima. Uma beleza selvagem, revolta, nos olhos todo o misticismo de um povo mergulhado na sensitividade. No semblante a simetria, o encanto, a lucidez e magia das mais estonteantes mulheres.

Era um homem experiente. Conhecia a fundo a estética feminina. E convenceu-se, sem dúvidas, sem hesitações, sem qualquer reserva, de que nunca, em toda sua vida cheia de amores, de conquistas, de paixões intensas, nunca avistara mulher tão incrivelmente bela.

Uma jovem cigana.

Não se conteve. Vasculhou com os olhos as tendas. Todo o clã parecia ter se ausentado. Aparentemente, só restara um velho, numa tenda do lado oposto, mergulhado numa senil sonolência.

Ele aproximou-se. Fez um sinal em reverência. A jovem nômade fitava-o, olhos penetrantes, sem desviá-los um momento sequer.

Como era bela! E tal qual a presa magnetizada diante do predador, veio até ela, revestido de uma intrepidez incomum em si. Enfrentaria tribos e mais tribos de ciganos, empuharia punhais, lançaria duelos, suportaria as temíveis pragas das velhas ciganas.

Ela estendeu o braço, pedindo a mão dele em palma. A buena-dicha. Fazia parte da natureza dela. A quiromancia, entre seu povo, era quase uma saudação.

Ele entregou a mão, solícito, entorpecido diante de beleza tão invulgar. E acocorou-se diante da beldade, para melhor poder servi-la.

A cigana abriu um pouco as pernas, acomodando-se um pouco mais os quadris sobre a trípode.

Nesse instante, ele quase caiu fulminado.

Um odor pestilencial chegou, numa forte lufada, até suas narinas. Sentiu que ia tombar. A visão turbou-se. Uma névoa espessa toldou-lhe o raciocínio.

A menina cheirava mal, Um fedor carregado, pútrido, mefítico. Lembrou-se num momento dos mercadões de peixe em decomposição, inundando o ar com seu odor carregado de azedume adstringente.

Saiu dalí tenteante. Ganhou terreno mais aberto. Sorveu o ar puro com sofreguidão.

Não se recordava mais do que lhe vaticinara a jovem quiromante. Ainda olhou para trás. Bela, tão bela como nunca vira mulher alguma em toda sua vida. Toda sua silhueta transmitia uma imaculada nobreza.

Ela agora sorria, mui discretamente sardônica. Mais que qualquer gaja, ela conhecia, mesmo jovem, as ilusões da matéria.

Mago Eremita, 19/01/2007.